Monday, August 07, 2006

Dentro da seringa


Senti a pele escorregar sobre minha carne, em um ardor insuportável. A língua se transformava em espuma dentro de minha boca. Estava tudo escuro, exceto pelos lampejos daquela máquina demoníaca que ele mantinha no meio da sala. O puto ria alto enquanto injetava aquela coisa em mim. Eram cinco agulhas espalhadas em meu peito, pernas, braços e pescoço. De todas as merdas que eu fiz na minha merda de vida essa devia ser a pior.

Conheci o velho em uma casa de ópio. Era meio esquisito, mas não existem pessoas normais neste tipo de lugar. Pessoas sujas ficam em lugares sujos, fazendo coisas sujas. Aquele maldito olhar amarelado, remelento. A barba sebosa, com restos de comida no canto da boca. Ele fedia mais do que eu. Eu achava o sujeito patético. Ele e seu jaleco encardido, com manchas de coisas que eu nem queria imaginar de onde vinham. Ali era conhecido obviamente como "Doutor" . Pois é, não cobre muita criatividade de viciados.

Diziam que já tinha matado três perdidos ali, dando algumas seringas coloridas de presente. Eu me importava mais em tirar as carteiras daqueles caídos no chão do que prestar atenção no sujeito decrépito.Foi assim que ele soube tirar proveito da minha estupidez.
Certo dia, enquanto eu me esforçava para rolar o corpo de um gordo para o lado e tirar seu relógio de bolso, o velho ficou ali, observando. Eu me levantei, e enquanto limpava meu prêmio retirado da bola de sebo entorpecida, o "Doutor" me fez um pergunta:
- Gosta de dinheiro não é rapaz?
- O dinheiro é a única coisa que me transforma em algo que não sou, meu velho - respondi enfiando o relógio no bolso da camisa.

O velho começou a me trazer seringas. Eu injetava, ele ficava olhando com as órbitas dos olhos estufadas, sorria para meu corpo se contorcendo no chão imundo. Depois me dava um pouco de dinheiro. No começo eu achei que estava com medo, mas quem não enxerga a própria miséria não entende o medo. Então continuei. Logo o efeito passava, eu vomitava bile por algumas horas. Eu ria de mim mesmo cuspindo a gosma esverdeada pelas paredes. O "Doutor" ficou impressionado com a minha resistência. Eu também. Pensei que era para eu estar morto, mas não estava. A cada vez que abria as veias para receber minha sentença, imaginava que não seria a última. "Dessa eu passo" eu dizia a mim mesmo apertando o êmbolo com a agulha fincada entre os dedos dos pés.
Fui longe demais.
Agora eu grito nesta sala maldita e fedorenta. Grito para este velho insano me soltar. Grito porque não quero mais sentir esta dor. Grito porque jeu á devia ter morrido há muito tempo.
Bolas verdes de bile. Um relógio de prata iluminando o mar, dentro de uma seringa. Os olhos amarelados e remelentos são grandes demais.

A praia de areia mole e pastosa, eu afundo e espero apodrecer. Minhas mãos não existem mais. São tocos. Minhas pernas, oh minhas pernas! Tentáculos violetas que se seguram nas laternas de papel da casa de ópio. Por quê isso não pára?

Estava boiando. Meus membros agora me obedeciam, um pouco descordenados. A água fria, meu corpo nu. Uma luz imensa e amarelada incomodava meus olhos. Era grande, vinda de um pedestal branco. Uma chama descomunal. Podia ser o inferno, podia ser o céu. O fogo é sagrado ou maldito.

Uma gota escorreu pelo pedestal. Uma gota que se solidificou rapidamente. Eis que percebi. A enorme flama era uma simples vela. E lá estavam os olhos, grandes demais. E eu me vi pequeno demais. Como sempre fui.